quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Cervejaria e o 'Kerb'

Perto de minha casa havia uma cervejaria; era uma construção sombria entre altas árvores, perto de um riacho; o cenário tinha um aspecto lúgubre e misterioso. Daquele lugar, nós, crianças, tínhamos idéias fantasiosas de lá acontecerem experiências e trabalhos com poções mágicas que resultavam em uma bebida, para nós, de gosto desconhecido. A cerveja e outra, chamada de gasosa, que para nós reunia o sabor de todas as coisas gostosas que conhecíamos e a tomávamos em ocasiões muito especiais.
            O dono da cervejaria era um homenzinho franzino, de fala baixa como se estivesse sempre sussurrando segredos, talvez suas fórmulas quando conversava com alguém.Ele passava na casa dos agricultores uma vez por ano, quando era feita então a encomenda da cerveja e gasosa por ocasião do Kerb – festa anual que lembrava a data de fundação do povoado ou o padroeiro da igreja. A entrega da encomenda era feita três a quatro dias antes do domingo de Kerb e os engradados de madeira eram guardados em lugar seguro e em segredo para que ninguém mexesse neles. Eu sempre desejava muito que sobrassem muitas garrafas gordas e escuras daquelas caixas de madeira que as visitas não tivessem tomado depois daquele domingo especial; elas tinham o gosto de um pedaço de céu, pelo que falavam era o que de mais especial poderia existir e eu ficava horas espreitando as nuvens para ver se descobrisse o que de tão doce elas ocultavam, e era em vão...
            A semana dos Kerbs era muito diferente de qualquer outra, além do fato de vir o cervejeiro, era uma semana em que a casa toda era posta do avesso; móveis eram limpos de todos os ângulos, as poucas porcelanas de minha mãe eram lavadas e cuidadosamente guardadas novamente nos armários, os talheres eram arriados até desprenderem brilhos fulgurantes, a sala era enfeitada com fitas novas de papel crepom no teto, o pátio era varrido até se levar metade da terra solta embora, com vassouras que caíam de coqueiros e eram guardadas no galpão para este fim. Hortas e jardins eram capinados e postos em ordem para serem admirados pelas amigas de minha mãe que percorriam os corredores formados pelos canteiros onde trocavam mudas, sementes, palpitavam sobre o tempo, o crescimento das plantas, a educação das crianças e, longe dos homens, falavam segredos femininos a meia voz; era o que eu deduzia, pois eu acompanhava as visitas de longe, lugar de criança não era junto dos adultos para ouvir seus assuntos indiscretos.
            Um mês antes, minha mãe ia ao armazém que vendia de querosene a tecidos passando por farinhas e mantimentos de cozinha. Lá ela escolhia um bonito tecido, para ela e para mim, destinado a se transformar em um vestido e se tivesse sorte ganharia sapatos novos. Depois íamos à costureira, ela tinha grandes revistas com folhas duras e coloridas, com inúmeros modelos de vestido. Idéias eram trocadas, modelos observados e aqueles que pareciam se adequar melhor à silhueta eram escolhidos. A costureira tirava as medidas e voltávamos para casa. Na semana do Kerb, íamos provar a roupa e dias depois da prova, buscávamos para que pudéssemos usá-la na véspera do Kerb.
            Na sexta-feira minha mãe começava a preparar as receitas para o domingo: Pães, roscas, cucas, doces, que coloríamos à noite com confeitos coloridos, enquanto meu pai abria duros e enormes cocos que minha mãe ralava e cozinhava depois.
            No sábado, ela preparava os bolos que eram recheados com doces de frutas diversas e enfeitados com merengue e rebuscos coloridos. À tardinha, íamos à missa com a roupa nova, deveria ser usada pela 1ª vez na missa para ser benzida e dar boa sorte; à noite todos iam ao baile.
            Era um dos poucos e raros dias em que minha mãe usava um sapato de salto, embora discreto, arrumava os cabelos num penteado, passava batom tímido e pó de arroz. Minha mãe neste dia ficava muito, muito bonita; como gostava de vê-la sempre assim, ela até parecia uma daquelas mulheres que eu havia visto nas revistas de figurino da costureira e ao acompanhá-la ao baile com meu vestido rodado e florido me orgulhava de sua companhia. Todos sentavam em mesas ao redor da pista de danças do salão enfeitado com folhas de coqueiro e flores coloridas de crepom. A orquestra tocava enquanto os homens dançavam de terno e as mulheres de vestidos rodados. Meu sono tentava me vencer, mas me esforçava ao máximo em resistir para ver aquelas cenas de contos de fadas, até a hora em que meus pais se recolhiam.
            No outro dia, o domingo amanhecia diferente, parecia até que a natureza sabia que era domingo de Kerb. Quando a manhã ia ao meio, as visitas começavam a chegar, parentes conhecidos com os quais já haviam sido realizados negócios.
            Os assados eram feitos no forno em meio a conversas, e as mesas eram postas no alpendre, cucas, lingüiças, pães, assados, saladas frescas vindas da horta e em seguida a cerveja e aquelas gordas garrafas escuras, que eu aguardava com ansiedade e pelas quais eu deixava de lado parte do almoço. Em seguida minha mãe descia dos armários os vidros de compotas de frutas. Para dizer a verdade eu não entendia porque as pessoas que só nos visitavam uma vez ao ano tinham o direito a todas essas iguarias enquanto eu só ficava a olhar aquelas frutas dentro dos vidros durante o ano todo para naquele dia dividi-las com eles. E o dia era reservado para comer coisas que se desejava comer todos os dias, mas só eram compradas e feitas no Kerb. Pelo meio da tarde, minha mãe colava toalhas bordadas e guardadas especialmente para estas ocasiões nas longas mesas; e suas porcelanas, eu as achava lindas, aqueles pratinhos todos com as xícaras, bules enormes fumegantes pareciam gravuras do meu livro de escola e no centro da mesa as delicias: doces, cucas, roscas, rocamboles, bolos e o café fumegante. Parecia tão quente que eu me recusava a beber, então meu pai abria a mão daquela obrigação e me trazia uma daquelas garrafas gordas e escuras de gasosa.
            O dia acabava e eu me preocupava em ver quantas garrafas haviam sobrado para poder degustar nos domingos seguintes, ou então desapontada me limitava a esperar mais um ano.

domingo, 17 de julho de 2011

Uma Feira Familiar.

Eu e meu marido fomos hoje a uma feira, quase nada me atrai mais, do que uma feira deste tipo. Resumia-se a plantas ornamentais, orquídeas, artesanato variado, produtos provenientes de agroindústrias e produtos orgânicos.

            Há algumas décadas pelas povoações rurais era comum se encontrar empreendimentos onde se transformavam ou beneficiavam os produtos agrícolas. Lembro-me que próximo onde moro havia uma cervejaria que também fabricava refrigerante a base de guaraná, havia um moinho que descascava arroz cultivado pelos agricultores, moía o trigo e o milho por eles trazido, havia um açougue, uma atafona que fazia polvilho, farinha de mandioca, fábrica de manteiga que beneficiava o leite recolhido diariamente por carroças conduzidas por burros, recolhiam o leite lá de casa, também. As latas ficavam a beira da estrada e a estrada não passava de um caminho estreito pouco usado onde as árvores faziam túnel. A ervateira, que da escola se ouvia bater os pilões, seus empregados a cada ano passavam uma semana pelas roças do meu pai cortando os galhos das árvores de erva-mate. Estes, então eram levados para a ervateira, sapecados e triturados até aparência de chá triturado e então meu pai buscava a parte que lhe cabia para preparar seu chimarrão diário. Meu pai mesmo, tinha um alambique, onde a cana-de-açúcar plantada em suas terras e outra que ele comprava era transformada em    cachaça. Esta cachaça era levada dentro de um barril em uma carroça para uma cooperativa, distante vinte quilômetros, onde era engarrafada juntamente com a produção de outros alambiqueiros e posta no comércio.
            Num intervalo de décadas, estes empreendimentos fecharam por falta de familiares interessados em continuar o negócio ou por falta de viabilidade financeira. É o período em que entram as grandes indústrias, os monopólios e quebram economicamente estas pequenas empresas ou então são drasticamente lacradas por não estarem adequadas a questões de sanidade ou legais empurrando  dezenas de pessoas  que tinham uma função específica para a margem tornando-os assalariados num trabalho semi-escravo nas indústrias que vão se instalando nas vilas que se formam.Sem falar daqueles que não viam preços adequados na venda de seus produtos  agrícolas e eram seduzidos pelas promessas infundadas da cidade e para lá iam engrossar a fila da marginalidade amontoados em cortiços e favelas.Foi a fase em que se copiou o modo de comer,vestir e viver do exterior, ignorando-se a riqueza interna,desperdiçando-a, induzindo a dependência externa,lamentável.
            Ainda bem que se percebeu a grande besteira que estava se cometendo e começou-se a resgatar nossa cultura e nossa história e estes antigos empreendimentos familiares. Conseguiu-se resgatar onde ainda havia algum resquício do empreendimento ou alguém que quisesse de alguma forma ressuscitá-lo, mas isto nem sempre ocorreu. Grandes e promissores empreendimentos se perderam no tempo, outros, os familiares desacreditados de seu trabalho e pouco confiantes nesta nova oportunidade não se empenham em resgatar ou reiniciar.
            Mas o que fomos ver, olhar, degustar, foram o que muitas famílias resgataram e apostaram numa nova oportunidade podendo assim incrementar sua renda, melhorar seu nível de vida e vislumbrar uma história diferente para seus filhos. Famílias que se reuniram em cooperativas e associações e produzem sucos e vinhos orgânicos, chás, temperos e ervas medicinais orgânicos, conservas e doces, cachaças e licores. No artesanato transformam palha de milho, trigo, taboa, bananeira em objetos lindíssimos; trabalham a lã de ovelha transformando-a em peças de vestuário, acolchoados; um grupo de senhoras  resgatou o requinte e a beleza do bordado feito a mão. Nossas mães e avós tinham por hábito bordar todo o enxoval quando casavam. Um trabalho lindíssimo. Comprei uma linda toalha bordada. Talvez um dia tenha paciência e sapiência para bordar uma e deixar para meus filhos e netos.
            Outro dia conversando com uma pessoa ela me disse, em relação a propriedade rural, ou se é grande ou se é bosta .Para esta pessoa quero dizer que ela está totalmente equivocada e lançando mão de dados atuais do IBGE lhe informo que 70% dos alimentos consumidos no Brasil são oriundos da agricultura familiar e ela gera 70% dos empregos no meio rural, enquanto o agronegócio tem 90% de crédito disponibilizado, ocupa quase 80% das terras e gera apenas 30% de empregos no meio rural.
            Voltando aos empreendimentos familiares é um trabalho que me deixa realmente extasiada, sem palavras, porque eu acredito no potencial da produção agrícola da pequena propriedade e na capacidade e sabedoria de pessoas que realmente querem crescer, transformar a realidade onde vivem. Nossa terra é uma terra ímpar em capacidade de produção, é preciso apenas saber cuidar dela e cultivá-la, é uma pena que muitos não acreditam nesta verdade mas o que os dados mostram leva a pensar...

Dias de Inverno e Lareira.

Gosto menos do inverno, muito menos, como diz meu filho, quando não tem umidade que tudo encharca, tem nevoeiro, ou geada, e quando não ocorre geada, chuvas intermitentes. Mas nada no mundo é totalmente ruim ou totalmente bom, sempre há dois lados.
            O nevoeiro tem o seu que de mistério envolvendo vultos e paisagens ao longe, a geada mata muitos cultivos úteis, mas também elimina insetos nocivos. As chuvas...Não há nada mais gostoso que ouvir os grossos pingos de chuva batendo no chão trazendo o cheiro de terra molhada, o som dos pingos ressoando no telhado, ver os animais correr à procura de refúgio e a natureza toda gotejando, lagos e açudes enchendo e a água sobrando e correndo sobre taipas e, encerrada a faina, o dia se estende  sombrio e quieto e a noite quase sempre traz no frio as estrelas faiscantes no firmamento e o som em coro  dos sapos pelos pântanos.
            Para mim, é um período para aconchego e de certa reclusão, as sombras da manhã se prolongam e as da tarde se adiantam e a vida vai se resumindo em cumprir  as tarefas essenciais e a se preparar receitas cheirosas e fumegantes que aquecem o corpo e são degustadas pela família reunida junto ao fogo da lareira e os livros me levam a sair  do meu lugar comum e a conhecer outras primaveras e a magia do sol da meia noite.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Os ventos em Hügel Wind.

Sempre gostei de ventos, seu barulho, sua melodia. Talvez seja porque moro num morro de ventos e já os ouvia antes de nascer.
Em Hügel Wind, um lugar de certa imponência, eles sopram de muitos lados e se manifestam de diferentes formas... O acalorado e pachorrento vento norte fazendo bater portas, voar roupas descuidadas do varal, sujando ou varrendo pátios e enlouquecendo os menos equilibrados. Não sei por que, mas associo-o as manhãs e quando ele surge nunca se sabe como o dia pode acabar.
            E as tardes geladas de vento minuano então, trazem lembranças de montanhas geladas que eu não ousaria conhecer, este sim, faz as últimas folhas do outono caírem desnudando meu plátano e fazendo meus ciprestes se curvarem  até quase o chão. Nós que precisamos enfrentá-lo nos agarramos a ponchos, gorros e cachecóis e o pelo de Duas Meias se movimenta ao passar de seu zunido e ela olha com o focinho gelado interrogativamente.
            A partir da primavera, quando o dia já está ao meio, surge o vento sudeste, ele por vezes impaciente, me faz fechar portas, recostar janelas, por outras vezes refresca a me traz recordações do mar ao longe, bastante longe, quem sabe  de  terras além mar, as vezes o invejo  pela facilidade com que viaja e pode conhecer outras gentes, costumes e lugares.
            E as brisas leves, ocasionais e sorrateiras do verão... Eu as anseio quando estou com meu livro, sentada sob as frondosas figueiras do meu jardim com Duas Meias ao meu lado e por vezes elas fazem com que nós duas cochilemos.

Amanhecer em Hügel Wind.

Já me disseram certa vez, que prá se viver de verdade em um sítio, é preciso levantar cedo e dormir não tão tarde que não consiga fazer o primeiro. Grande parte da beleza do campo, na verdade, reside nestes dois extremos, em minha opinião, os amanheceres são misteriosos e os anoiteceres espetaculares. Cedo da manhã,quando o dia está iniciando a apenas algumas horas, tudo está quedado, apenas frio, orvalho, brumas, somente a lua e as estrelas soberanas e nítidas no céu. O silêncio paira e o dia é ainda uma interrogação.
            Ao atravessar o pátio passo por entre árvores e plantas ainda disformes e Duas Meias, sonolenta, me espia de sua casa. Aos poucos o silêncio começa a ser quebrado, o balido das cabras que começam a ver movimentação humana, o cantar estridente do galopara anunciar um novo dia, as vacas mugindo por pasto, os pássaros tímida e alternadamente em meio a vegetação se manifestam. Numa seqüência os sons matutinos vão surgindo cada vez mais intensamente, o caminhão do leite ronca no morro e os gansos grasnam no açude, latas e tampas retinem, o ônibus escolar recolhe o vozerio estridente ao longe, o jornaleiro zunindo larga o jornal.
            E quando se vê, as luzes que a pouco eram intensas, sumiram em meio aos sons e repentinamente o sol lança seus raios sobre a terra e eles aparecem entre os grandes e longos colmos verdes do bambuzal e num piscar de olhos  o mistério foi desvendado e um novo dia surge cheio de possibilidades e surpresas.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Visita à cidade

Hoje fiz uma rápida visita às minhas filhas na cidade. Gosto de ir à cidade, por vezes, para mim ela é sinônimo de cultura, arte, lazer. Posso ir a uma livraria ou a um sebo, que para mim são universos de mil e uma possiblidades, visitar e ver antiquários, lojas, exposições, ir à um cinema. Minhas meninas adoram me fazer companhia em tais lugares e até um dos meus genros. Andando por certas ruas dá gosto de ver seus casarios enormes, seus jardins impecáveis, mas observando um pouco se percebe que não foram feitos pelas mãos de seus donos, surgiram repentinamente prontos e são impecáveis porque eles não interagem de verdade com quem ali mora e ele não é seu criador. É apenas um jardim perfeito para se admirar de fora. Muitas coisas na cidade parecem perfeitas, impecáveis, a cidade em si, é sedutora e voraz com suas luzes seu burburinho, seu corre, corre e ela consegue devorar e engolir os que nela vivem, tornando-os frios, impessoais e fúteis.
É preciso muito cuidado, é preciso se ater muito a essência do que se traz consigo, se ater as origens, para apenas se viver nela e usufruir o que de bom ela oferece, sem deixar se corromper, porque aqueles que deixarem se levar por ela em breve serão apenas cascas ocas, fáceis de serem levados pelo vento, o que é uma pena, pois, o cerne é de grande valor.
Mas que bom que vou lá apenas algumas vezes e logo volto ao meu sítio, chegando, já sinto cheiro da terra, do capim e minha cachorra Duas-meias já me aguarda na entrada com as orelhas em riste e ao me ver chegar abana sua linda cauda em festa.