Perto de minha casa havia uma cervejaria; era uma construção sombria entre altas árvores, perto de um riacho; o cenário tinha um aspecto lúgubre e misterioso. Daquele lugar, nós, crianças, tínhamos idéias fantasiosas de lá acontecerem experiências e trabalhos com poções mágicas que resultavam em uma bebida, para nós, de gosto desconhecido. A cerveja e outra, chamada de gasosa, que para nós reunia o sabor de todas as coisas gostosas que conhecíamos e a tomávamos em ocasiões muito especiais.
O dono da cervejaria era um homenzinho franzino, de fala baixa como se estivesse sempre sussurrando segredos, talvez suas fórmulas quando conversava com alguém.Ele passava na casa dos agricultores uma vez por ano, quando era feita então a encomenda da cerveja e gasosa por ocasião do Kerb – festa anual que lembrava a data de fundação do povoado ou o padroeiro da igreja. A entrega da encomenda era feita três a quatro dias antes do domingo de Kerb e os engradados de madeira eram guardados em lugar seguro e em segredo para que ninguém mexesse neles. Eu sempre desejava muito que sobrassem muitas garrafas gordas e escuras daquelas caixas de madeira que as visitas não tivessem tomado depois daquele domingo especial; elas tinham o gosto de um pedaço de céu, pelo que falavam era o que de mais especial poderia existir e eu ficava horas espreitando as nuvens para ver se descobrisse o que de tão doce elas ocultavam, e era em vão...
A semana dos Kerbs era muito diferente de qualquer outra, além do fato de vir o cervejeiro, era uma semana em que a casa toda era posta do avesso; móveis eram limpos de todos os ângulos, as poucas porcelanas de minha mãe eram lavadas e cuidadosamente guardadas novamente nos armários, os talheres eram arriados até desprenderem brilhos fulgurantes, a sala era enfeitada com fitas novas de papel crepom no teto, o pátio era varrido até se levar metade da terra solta embora, com vassouras que caíam de coqueiros e eram guardadas no galpão para este fim. Hortas e jardins eram capinados e postos em ordem para serem admirados pelas amigas de minha mãe que percorriam os corredores formados pelos canteiros onde trocavam mudas, sementes, palpitavam sobre o tempo, o crescimento das plantas, a educação das crianças e, longe dos homens, falavam segredos femininos a meia voz; era o que eu deduzia, pois eu acompanhava as visitas de longe, lugar de criança não era junto dos adultos para ouvir seus assuntos indiscretos.
Um mês antes, minha mãe ia ao armazém que vendia de querosene a tecidos passando por farinhas e mantimentos de cozinha. Lá ela escolhia um bonito tecido, para ela e para mim, destinado a se transformar em um vestido e se tivesse sorte ganharia sapatos novos. Depois íamos à costureira, ela tinha grandes revistas com folhas duras e coloridas, com inúmeros modelos de vestido. Idéias eram trocadas, modelos observados e aqueles que pareciam se adequar melhor à silhueta eram escolhidos. A costureira tirava as medidas e voltávamos para casa. Na semana do Kerb, íamos provar a roupa e dias depois da prova, buscávamos para que pudéssemos usá-la na véspera do Kerb.
Na sexta-feira minha mãe começava a preparar as receitas para o domingo: Pães, roscas, cucas, doces, que coloríamos à noite com confeitos coloridos, enquanto meu pai abria duros e enormes cocos que minha mãe ralava e cozinhava depois.
No sábado, ela preparava os bolos que eram recheados com doces de frutas diversas e enfeitados com merengue e rebuscos coloridos. À tardinha, íamos à missa com a roupa nova, deveria ser usada pela 1ª vez na missa para ser benzida e dar boa sorte; à noite todos iam ao baile.
Era um dos poucos e raros dias em que minha mãe usava um sapato de salto, embora discreto, arrumava os cabelos num penteado, passava batom tímido e pó de arroz. Minha mãe neste dia ficava muito, muito bonita; como gostava de vê-la sempre assim, ela até parecia uma daquelas mulheres que eu havia visto nas revistas de figurino da costureira e ao acompanhá-la ao baile com meu vestido rodado e florido me orgulhava de sua companhia. Todos sentavam em mesas ao redor da pista de danças do salão enfeitado com folhas de coqueiro e flores coloridas de crepom. A orquestra tocava enquanto os homens dançavam de terno e as mulheres de vestidos rodados. Meu sono tentava me vencer, mas me esforçava ao máximo em resistir para ver aquelas cenas de contos de fadas, até a hora em que meus pais se recolhiam.
No outro dia, o domingo amanhecia diferente, parecia até que a natureza sabia que era domingo de Kerb. Quando a manhã ia ao meio, as visitas começavam a chegar, parentes conhecidos com os quais já haviam sido realizados negócios.
Os assados eram feitos no forno em meio a conversas, e as mesas eram postas no alpendre, cucas, lingüiças, pães, assados, saladas frescas vindas da horta e em seguida a cerveja e aquelas gordas garrafas escuras, que eu aguardava com ansiedade e pelas quais eu deixava de lado parte do almoço. Em seguida minha mãe descia dos armários os vidros de compotas de frutas. Para dizer a verdade eu não entendia porque as pessoas que só nos visitavam uma vez ao ano tinham o direito a todas essas iguarias enquanto eu só ficava a olhar aquelas frutas dentro dos vidros durante o ano todo para naquele dia dividi-las com eles. E o dia era reservado para comer coisas que se desejava comer todos os dias, mas só eram compradas e feitas no Kerb. Pelo meio da tarde, minha mãe colava toalhas bordadas e guardadas especialmente para estas ocasiões nas longas mesas; e suas porcelanas, eu as achava lindas, aqueles pratinhos todos com as xícaras, bules enormes fumegantes pareciam gravuras do meu livro de escola e no centro da mesa as delicias: doces, cucas, roscas, rocamboles, bolos e o café fumegante. Parecia tão quente que eu me recusava a beber, então meu pai abria a mão daquela obrigação e me trazia uma daquelas garrafas gordas e escuras de gasosa.
O dia acabava e eu me preocupava em ver quantas garrafas haviam sobrado para poder degustar nos domingos seguintes, ou então desapontada me limitava a esperar mais um ano.